Guido Lang
(História inspirada em fatos reais. Relato de um romance que acabou em tragédia no final do século XIX, no atual município de Teutônia/RS)
1 - A Colônia Teutônia
A Colônia Teutônia, no interior do município de Estrela, é uma fértil terra, que, a partir de 1858, foi europeizada. Inúmeros imigrantes, sobretudo hunsrücker e westfalianos (acrescido de uns poucos austríacos da Boêmia), instalaram-se nas encostas e vales do Arroio Boa Vista. Algumas famílias, com estirpes espalhadas pelo Estado, possuem suas origens nas plagas teutonienses; as terras, originalmente, foram divididas em 600 lotes coloniais, que tinham a extensão entre 30.000 a 200.000 braças quadradas. Vários sobrenomes salientaram-se na epopéia da colonização, no que se destacam, entre muitos outros, os Franck, Hilgert, Hetzel, Krützmann, Jasper, Brandenburg, Dickel, Gennehr, Lang, Strate, Wiebusch, Dockhorn...
Philipp Franck, Anne Jasper e Heinrich Hilgert, protagonistas da história, somaram-se aos inúmeros desbravadores, que num trabalho paciencioso, foram conquistando centímetro por centímetro da Floresta Pluvial Subtropical. Animais selvagens, insetos desconhecidos, répteis temidos, botocudos errantes foram enfrentados com artefatos rudimentares. Os colonos, na ânsia por terras, tinham somente um lema: “Vencer ou perecer”. Inexistia a ideia do retorno ao torrão europeu, porque se carecia de recursos.
Os pioneiros, depois de morar embaixo de árvores ou improvisar moradias, iniciaram a derrubada das centenárias árvores, que, entrelaçadas por cipós, formavam emaranhados. Inúmeras espécies, como angicos, canelas, canjeranas, cedros, grajuviras, louros e ipês possuíam volumosos troncos, que precisavam de vários braços para conseguir abraçá-los. Um trabalho demorado de corte, cujas ferramentas e métodos rústicos (como machado, serrote e fogo) romperam o grito dos bugios e o cantar dos pássaros. A terra, com o trabalho familiar, necessitava ser conquistada para o plantio da abóbora, cevada, feijão, mandioca, milho, trigo... Animais domésticos, como galinhas, gansos, patos, gado e porcos foram multiplicando-se ao ritmo das colheitas, quando abundava trato. Alguma montaria constituía-se numa “uma pérola” em meio às picadas (trilhas) de mato que, com facões e machados, foram abertas pelos agrimensores diretores da companhia colonizadora (Sociedade Colonizadora Schilling, de la Rue, Rech, Kopp & Cia) para fazer as medições.
Anne, Philipp e Heinrich participariam do processo de conquista, quando os filhos eram a mão-de-obra barata das famílias germânicas. Dialetos, como o austríaco, hunsrück e westfaliano (“sapato-de-pau”), ouviam-se às margens do fértil Arroio Boa Vista, que é o maior curso d’água da margem esquerda do Rio Taquari. Falas estranhas às terras subtropicais externavam um modo de pensar e viver dessa gente empenhada em construir uma nova morada. Várias famílias, nas diversas picadas/localidades (Catarina, Boa Vista, Glück-auf, Germana, Frank, Neuhaus, Nove Colônias...), viram-se instaladas em algum lote. O afluxo de novas famílias advinha com o progresso e os casamentos, através dos quais, durante algumas décadas, as estirpes viram-se aparentadas. As melhorias, como caminhos de acesso, escolas comunitárias, pontos de pregação evangélico-luteranos e vendas coloniais sucediam-se com os anos, quando ocorreram melhorias econômicas. O canto coral e o baralho (carteado) ganharam espaço como diversão e tornaram-se locais de encontro e reencontro. Inicialmente, nas próprias famílias; depois, nas casas comerciais (conhecidas como vendas). O escambo de artigos agrícolas por ferramentas, ocorria nos estabelecimentos de Karl Arnt e Ernst Hetzel. Outros, com os anos, sucediam-se em cada localidade, quando colonos-comerciantes e colonos-pastores constituíam-se como as pessoas mais informadas e viajadas do lugarejo.
2 - A venda
Anne Jasper, nos idos de 1875, foi encarregada de fazer umas compras no armazém de Ernst Hetzel, que se localizava nos fundos da Boa Vista (lugar posteriormente denominado Linha Capivara). Ela, trocando um pouco de café e sal por manteiga e ovos, deparou-se com um jovem que, como morador da Picada Frank, encontrava-se no estabelecimento. O rapaz, de imediato, chamou-lhe a atenção, quando ele, como bom companheiro e seguindo o hábito local, cumprimentou-a com um "bom dia". Anne, muito envergonhada e tímida, como as meninas da colônia, viu algo diferente naquele moço, porque “o sexto sentido” parecia-lhe pressentir algo.
Philipp, após a ida da menina, perguntou ao Ernst:
- “Quem é esta menina simpática?
Ernst respondeu:
- “Ela é filha de Friedrich Jasper, que é um morador da localidade. Eles são de uma família caprichosa e afluíram da Westfália. Contam que o velho lutou nas Guerras da Unificação Alemã (1870) e ganhou a Grande Cruz de Ferro do Império Alemão. Ele revela-se um exímio atirador e construtor”.
Uns meses transcorreram e Anne parecia ter esquecido a fisionomia do moço. A preocupação era auxiliar os pais na criação dos irmãos, cuidar dos serviços domésticos, auxiliar nas atividades agrícolas... O princípio era trabalhar com o objetivo de reunir economias, que o velho Jasper, com a maior parcimônia, reunia e guardava. Inúmeras moedas, sobretudo de ouro e prata com a esfinge do Imperador Dom Pedro II, acumulavam-se em um baú. A preocupação, a cada transação comercial, era vender um pouco mais que as compras efetuadas. Algumas divisas, em forma de numerário, precisariam advir, do que os comerciantes não gostavam, uma vez que davam preferência ao mero escambo, e os colonos ficavam a mercê dos vendedores.
A família Jasper, nos primeiros anos, preocupou-se em edificar a sua moradia. As pedras foram extraídas no próprio lote, pois nele afloravam pedras-grês (para edificação de alicerces e cercas de pedra). As pedras especiais foram utilizadas na moradia, enquanto as irregulares e pontiagudas na edificação das taipas. A madeira, como cabriúva e o cedro, foi cortada na floresta, da qual se fez janelas, portas e telhado. Um solar Jasper, no estilo enxaimel, viu-se construído, moradia essa que passaria por gerações. Uma preocupação excepcional mantinha-se com o porão, que era o espaço do abate de animais, depósito de ferramentas e produtos e refúgio durante os rigores do verão. Um recanto, entre as inúmeras pedras do alicerce, viu-se resguardado para que o dinheiro pudesse ganhar abrigo seguro diante da investida de forasteiros. Um lugar inimaginável à guarda de reservas monetárias, que pudessem despertar a cobiça alheia e o egoísmo humano. Friedrich não se deu conta de que acabaria criando uma lenda. Uma história comunitária na qual o numerário Jasper não seria esquecido no espaço e tempo. Criou-se a lenda do tesouro Jasper, um segredo que desafia a descendência e os caçadores de tesouros.
Um punhado de moedas, cujo objetivo era resguardar o casal diante dos infortúnios da velhice, foi o resultado de uma economia de décadas. O princípio westfaliano de guardar níquel por níquel para tornar-se o mais afortunado da picada foi seguido à risca, e os Jasper tornaram-se os mais afortunados da Capivara e redondezas.
Um punhado de moedas, cujo objetivo era resguardar o casal diante dos infortúnios da velhice, foi o resultado de uma economia de décadas. O princípio westfaliano de guardar níquel por níquel para tornar-se o mais afortunado da picada foi seguido à risca, e os Jasper tornaram-se os mais afortunados da Capivara e redondezas.
3 - O baile
A rotina colonial parecia monótona, pois poucos eram os acontecimentos sociais, apenas alguns cultos, efetuados por Heinrich Beckmann ou Gustav Adolf von Grafen, aconteciam. Os casamentos, durante o ano, sucediam-se nas casas dos colonos. Nessas ocasiões, eram convidados só os vizinhos e parentes muito próximos. O Kerb também era festejado entre os familiares mais íntimos. Essa festa era o evento do ano e, durante a comemoração, oferecia-se, aos visitantes, “do bom e do melhor”. Não faltavam os assados, arroz, batatas, conservas, cucas, doces, massas, saladas... A família organizava-se e trabalhava o ano inteiro para oferecer o melhor nessa confraternização. Também retribuía, em outro momento, a visita dos parentes que participaram da comemoração.
Os bailes ocorriam de forma esporádica, geralmente por ocasião de uma inauguração de casa ou promoção familiar. Os comerciantes, em seus prédios espaçosos, promoviam eventos para os quais afluía o conjunto de moradores próximos e de picadas diversas. O acontecimento era animado por alguns “colonos músicos”, que mantinham um repertório reduzido. Alguma música, inclusive de composição própria, via-se tocada em várias oportunidades; noutros momentos, “arranhava-se os instrumentos”, e o pessoal adorava “essa barulheira”. Os colonos, “escondidos no meio do mato”, desconheciam maiores afinações, apenas ouviam, de algum imigrante, falar dos conceituados salões da Europa.
Anne Jasper, nos idos de 1876, foi a uma promoção de Ernst Hetzel, que era, ao lado de Karl Arnt, o comerciante mais influente das redondezas. A jovem, em meio ao reduzido número de pretendentes, tinha pouca opção. Além disso, as moças ficavam recolhidas num canto e os moços noutro. Ela, num certo instante, deparou-se com uma surpresa. Alguém lhe disse:
-“Vamos dançar?”.
A menina olhou o rapaz, tratava-se do jovem Heinrich Hilgert, que vinha dos lados da Boa Vista. Ela, como menina educada, disse:
-"Aceito!”
Os jovens dançaram algumas “marcas” porque, conforme versava a tradição, “uma dança era obrigação”. “Carão” diante do convite era motivo de ofensa e uma desfeita inesquecível; era encarado como uma afronta ao convidante, por isso era fundamental pensar bem diante de atitudes extremas.
Anne e Heinrich, naquela noite, dançaram algumas “marcas” sob o observar atento da família e vizinhos. As carícias e intimidades no ambiente público eram inimagináveis e motivo para denegrir a imagem da moça. Algumas músicas dançadas diante dessa sociedade colonial representavam um compromisso sério no entender dos moradores. Heinrich chegava a sonhar com Anne como sua esposa, porém ela não imaginava que poderia estar plantando seu desgosto e tragédia.
A bela jovem de cabelos louros e graça indescritível tinha ganhado um obcecado admirador, que não media a consequência dos seus atos. Ela desconhecia os Hilgert, que, sob os olhares de Friedrich Jasper e Wilhelmine Buhler, não eram a melhor referência. A família Hilgert, devido à carência de capricho e devido ao escasso apego ao trabalho, via-se descartada como boa companhia. Recomendava-se, de forma discreta, melhores candidatos nas circunvizinhanças. “Anne”, disse o pai, “você merece mais, valorize-se como menina, pois casamento não é negócio de cavalo”. Um casamento equivocado, nas colônias, mostrava-se uma tragédia, sobretudo à mulher; ela pagava a má escolha com a desonra e miséria.
Um casamento, na prática rural, significava um punhado de filhos, que costumeiramente superava uma dezena. Um fato raro era falhar dois ou três anos sem alguma “novidade familiar”, o que significava o aumento do número de membros. Os filhos, desde que se conheciam por gente, auxiliavam nos trabalhos e nunca faltavam nas tarefas de criação dos irmãos e nas lidas rurais. Cada filho, conforme a idade, ganhava tarefas de acordo com o vigor físico da idade. Anne, a semelhança das demais mulheres, naquela sociedade patriarcal, seria “uma boa parteira” e mulher submissa ao marido.
Algumas necessidades familiares advinham do escambo, porque os Jasper não tinham como produzir café, ferramentas de ferro, sal, tecido... A produção econômica principal eram os cereais, porque permitia a criação dos porcos. Esses, com sua gordura, forneciam a banha, que nos anos posteriores, ficou conhecida como “ouro branco” (uma atribuição posterior ao atual bairro de Languiru e ao hospital local). O abate de suínos era semanal, porque se aproveitava a banha para a comercialização, e a carne era destinada ao consumo familiar. Os domingos eram marcados pelos fartos assados de porco, que eram preparados no forno colonial. A linguiça também era preparada continuamente, e a vencida era descartada, tratada aos cachorros (daí surgiu a expressão: “amarrava-se cachorro com linguiça”).
A mãe de Anne, Wilhelmine, numa certa manhã, disse:
- “Anne! Dá uma corrida à venda do Hetzel, precisamos de sal. Deixa a conta para o pai acertar”.
A moça, como boa menina, de imediato aceitou e não tinha como dizer "não"; um pedido, naquela sociedade colonial germânica, era uma ordem. Anne, vestindo a roupa colonial e sem maiores arrumações, pegou uma égua selada e tomou a estrada geral. Procurou contornar os atoleiros do inverno, onde animais atolavam até a barriga. Alguns resquícios da mata nativa, ao longo da picada, mantinham-se intactos. O avanço da colonização acabaria com os centenários troncos e com isso, em boa parte, com animais silvestres. Os bugios, em seus bandos, faziam suas algazarras e brincadeiras; capivaras fossavam o solo e corriam entre trilhos; tucanos voavam entre galhos e troncos... Uma diversificada fauna de beija-flores, bem- te-vis, corruíras, joões-de-barro, quero-queros, tico-ticos... Às margens do Arroio Boa Vista, com abundância de água e sol, a vida ganhava um colorido especial.
Anne, no meio do caminho, deparou-se com um jovem cavalheiro, que umas horas antes, também tinha procurado a venda, que era espaço das compras e vendas, assim como das conversas informais e divulgação das novidades. O comerciante Ernst, sempre muito curioso, tratava de perguntar e divulgar os acontecimentos, quando os moradores, nas idas e vindas, traziam os sucedidos de acidentes, doenças, negócios, visitas... Esse moço, numa coincidência inimaginável, era o Philipp Franck. Ele, morador da Picada Frank, passava pelo Passo da Capivara no Arroio Boa Vista e achegava-se à localidade. O rapaz não retornara a fazer trajeto por mera casualidade, porque já tinha vislumbrado algum interesse. A menina loira tinha-lhe conquistado o coração e agora tinha-na a sua frente. Parecia-lhe uma bênção divina, porque Deus, na sua grandiosidade e onipotência, age por meios diretos e indiretos, de formas inimagináveis.
Philipp Franck fica fascinado e estático. Anne repara nele um olhar amoroso, porque os jovens logo compreendem a linguagem da paixão. O comportamento, com a proximidade, revela intenções. O jovem diz:
- “Bom-dia, Anne! Há muito procuro ter a oportunidade para poder conversar contigo. Você também ouviu falar dos Franck que residem na picada vizinha? Lembra-se de mim? O moço que se encontrava na venda e ficou a observar-lhe de forma atenta?”
- “Ouvi falar de ti! Lembro-me do fato de tê-lo encontrado há alguns meses”, complementou Anne.
-“Desculpe-me Anne! Há muito tempo ambicionava este momento. Queria ter vindo ao baile do Hetzel, mas foi-me impossível. Tenha a compreensão do meu interesse por você. Compreendo que é bastante grosseiro pará-la na estrada para conversar e externar-lhe outra proposta. A dificuldade é o encontro e reencontro, porque quero a ver-lhe em outros momentos”.
- “Fico sem palavras! A admiração e o espanto tomaram conta de mim. Não imaginava que alguém se encontrasse interessado em minha pessoa. Vou conversar com os meus pais sobre o nosso encontro e interesse. Não posso demorar-me a conversar muito tempo para não dar margem a outras interpretações. Até logo! Agente se vê noutros momentos”, concluiu a menina.
* Texto extraído do livro "As Sombras do Passado", páginas 03 à 07, de Guido Lang.
* Crédito da imagem: https://deveserisso.com.br/
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