quarta-feira, 22 de julho de 2020

AS CARTILHAS ESCOLARES


Guido Lang

Quem não se lembra de fatos pitorescos da trajetória escolar? Inúmeras lembranças surgem na memória, quando as reminiscências batem forte no peito. A saudade, de imediato, avoluma-se com as recordações de brincadeiras, de colegas, de "peças" aplicadas e de professores... A cartilha escolar, comum nas escolas comunitárias protestantes, também ressurge na nossa memória, quando fazemos “um retrocesso no túnel do tempo”. Esta, com raríssimas exceções, manteve-se durante décadas como recurso didático-pedagógico. Os professores coloniais, ocupados com diversas séries e uma infinidade de alunos, valiam-se dela com a finalidade de administrar as noções básicas dos cálculos, da escrita e leitura.
As cartilhas, usadas sobretudo dos anos vinte aos sessenta do século XX, eram empregadas da 1ª a 5ª série. Cada série escolar tinha um livro, que podia ser o 1º, 2º, 3º, 4º ou 5º. Os assuntos eram enfocados numa sucessão progressiva de dificuldades, sendo que a ênfase recaía nas línguas e na matemática. As publicações, sobretudo da Editora Rotermund de São Leopoldo, podiam ser bilíngues, isto é, tratar os conteúdos em alemão e em português. O aluno, conhecendo basicamente a fala coloquial do idioma germânico, deparava-se com traduções, através das quais se inteirava com a língua nacional (até 1938). Os conteúdos estudados relacionavam-se, primordialmente, ao cotidiano do educando, que, entre outros temas, tratava da vida rural. Estes temas, por exemplo, relacionavam-se à escola, à família, à casa, à horta, ao jardim, à roça, às tarefas profissionais... O estudo das ciências matemáticas basicamente decorria de cálculos práticos, ligados à medidas, pesos, preços...
O livro escolar, costumeiramente era adotado durante anos sucessivos, ou passado dos irmãos maiores aos menores. Os professores, conhecedores da carestia financeira e do espírito poupador das famílias teutas procuravam não trocá-lo. Impressos bibliográficos eram também limitados com relação aos acervos literários e esporadicamente surgiam novidades na área. Alguns livros, em decorrência, advieram da Alemanha porque não se tinha recursos didáticos no meio nacional. Inúmeros educadores precisavam criar seus cálculos e seus textos, pois careciam de livros didáticos. Estes faziam isso nalgum caderno, que anualmente, era usado na administração dos conteúdos do processo ensino-aprendizagem. O mestre, com sua costumeira formação precária, procurava “virar-se” naquele contexto, quando o lema era ensinar a todo custo.
Os alunos, durante o ano letivo, exploravam ao máximo os conteúdos da cartilha que, em função da impressão, praticamente eram considerados como “verdades definitivas”, portanto eram lidos, copiados, relidos e memorizados. Inúmeros textos eram decorados em função da “acentuada exploração do material”. Este estudo, seja de leitura individual, assistida ou coordenada pelo professor, fazia-se durante diversos dias com mesmo texto. Os alunos, desta forma, gravavam as sílabas e palavras, e, acabavam assim assimilando o processo da escrita e da leitura.
A cópia dos textos, para algum caderno ou lousa, era uma prática igualmente comum, em que o treino era o segredo do sucesso. Os cadernos, em função de custos, eram artigos de luxo, por isso a ardósia era mais comumente empregada. Os alunos, sem quaisquer questionamentos, eram obrigados a satisfazer os pedidos do mestre, que tratava de verificar diariamente as tarefas. O esquecimento ou desleixo representava castigos, que poderiam ser bastante severos. Um caderno de caligrafia acompanhava a cartilha e a lousa, e o capricho da letra advinha do insistente treinamento. O resultado da prática decorria de belas caligrafias, que não ofereciam maiores obstáculos à leitura; primavam pela clareza e perfeição que, na maioria dos exemplos, pareciam assemelhar-se a bonitos desenhos.
Os irmãos e pais procuravam auxiliar o aluno, quando este iniciava a carreira estudantil. Os textos da cartilha eram lidos em casa e os familiares procuravam sanar as dúvidas. A instrução familiar sucedia-se na aurora, quando o casal tomava chimarrão ao redor do fogão e aguardava o clarear do dia. Os intervalos das lidas rurais também poderiam ser ocupados, ao meio-dia ou no desfecho do dia. A família, desta forma, encontrava maneiras de acompanhar o desempenho estudantil, assim como, obtinha noções dos trabalhos concretizados nas aulas. Os rebentos, com a insistência de familiares e do professor, tinham a obrigação em aprender, assim em boa parte, explica-se a ausência de elementos analfabetos nas comunidades teuto-brasileiras.
As cartilhas escolares, portanto, prestaram uma importante contribuição ao contexto do processo ensino-aprendizagem rural. Elas facilitavam o acesso à leitura e à matemática, uma vez que convivia-se num ambiente de carência de acervos bibliográficos. Alguma publicação ficou gravada na mente; usaram-na abundantemente no período escolar. Saudades eternas dos bons anos e das experiências da infância!

* Fonte: Disponível no livro "OS COLONIZADORES DA COLÔNIA TEUTÔNIA: COLETÂNEA DE TEXTOS", páginas 184 até 187, de Guido Lang.

* Crédito da imagem: Alunos e professor Eduardo Ganz, suposto primeiro professor de Teutônia/RS, em uma Escola Comunitária da Colônia Teutônia - ano de 1870. Gentileza de Guido Lang.

* Postagem: Júlio César Lang.

* PROIBIDA A REPRODUÇÃO INTEGRAL OU PARCIAL DO TEXTO SEM A MENÇÃO DA REFERIDA FONTE (LEI Nº 9.610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998).

terça-feira, 14 de julho de 2020

AS COSTUREIRAS RURAIS



Guido Lang

O meio colonial, até os anos setenta, tinha uma intensa atuação de profissionais da costura, que espalhavam-se no contexto das localidades. O quadro era integrado por moças e senhoras, que mantinham costumeiramente uma grande lista de clientes. A fama e glória das costureiras podia abranger picadas circunvizinhas, de onde afluía a clientela. Os conhecimentos na costura e o preço dos serviços eram ingredientes básicos para alcançar a acentuada procura dos préstimos, que tinham maior procura nas épocas próximas à eventos festivos especiais. Os festejos de Kerb eram o grande período da fartura financeira e as profissionais não davam conta dos pedidos. Algumas recusas, em situações, tornavam-se uma realidade, quando as encomendas chegavam muitíssimo em cima da hora ou quando o contratante era péssimo pagador.
Os rurais adquiriam os tecidos nalguma venda, que os comprava em rolo e os vendia em metragem. O cliente adquiria a quantidade necessária para alguma camisa, calça ou vestido, e o produto da compra, em seguida, era encaminhado à costureira. Esta costumeiramente tirava as medidas no ato e anotava-as nalgum caderninho. As partes, neste instante, aproveitavam o momento para descrever os detalhes do modelo da costura, quando podiam advir ideias e sugestões da própria pedinte ou da profissional. Os exemplos de alguma publicação, podiam somar-se ao contexto, quando podia introduzir-se uma nova moda. O uso da roupa, costumava gerar amplos comentários, e era motivo de cópia e de ostentação da vaidade feminina.
As profissionais tinham suas máquinas de costura adquiridas a duras economias. As famílias, sobretudo os pais, esforçavam-se para poderem comprar este bem, que era destinado à menina moça. Esta também recebia o curso, que era concretizado com alguma profissional. Ela, a partir daí, tinha o compromisso de costurar as roupas dos membros familiares e nada poderia cobrar. Cobravam somente dos estranhos, dos amigos, parentes e vizinhos. Os irmãos casados igualmente tinham a obrigação de custear as despesas quando requisitavam trabalhos.
Uma boa moça, um bom par para o matrimônio, devia saber costurar, podendo ocupar-se, pelo menos, com as necessidades mais proeminentes da família. Esta poderia costurar as principais roupas ou concretizar os remendos imprescindíveis. Uma família colonial com esparsos ganhos não podia dar-se ao luxo de periodicamente ostentar gastos nesta área. As moças, com dedicação à profissão, podiam obter bons ganhos monetários e, em vésperas de casamento, podiam custear o enxoval. Os bens familiares da futura casa familiar, costumeiramente, eram adquiridos com esses ganhos. As senhoras costureiras, em diversos exemplos, complementavam os orçamentos domésticos, prestando serviços de costura a terceiros. Algumas moradias, em certas circunstâncias, adquiriam aparência de confecção, quando diversas agulhas, linhas, máquinas e tecidos espalhavam-se pelos inúmeros espaços residenciais. As contínuas visitas igualmente sucediam-se no desenrolar dos dias, pessoas iam e vinham. Os diálogos, neste ínterim, tomavam forma e os diversos acontecimentos e assuntos comunitários eram debatidos e difundidos. Um chimarrão, com alguns doces caseiros, circulava no ambiente, entretanto, as visitantes costumeiramente não se esqueciam de dar uma olhadinha no modelo de tecido ou vestido das amigas e concorrentes. As costureiras costumavam até comentar as inovações que podiam advir de novas modas.
As profissionais, mesmo com os ganhos e o “permanente clima recreativo”, não atuavam muitos anos na atividade, porque esta cansava excessivamente. Sucediam-se períodos com massivo trabalho, quando a labuta gerava um excessivo cansaço. Estas, durante dias e noites inteiras, ficavam em cima das tarefas e acabavam enjoando da profissão. As costureiras dedicavam-se à produção agrícola, quando uma nova candidata abraçava os pedidos. Esta parecia reescrever a trajetória, até que, nalgum instante, também desistia.
A derrocada definitiva das profissionais adveio nas décadas de setenta e oitenta, devido a propagação das indústrias de confecção nacional, que ofereciam e vendiam as vestimentas prontas. Elas tornaram mais econômico o produto e as costureiras não puderam competir neste mercado. Ceifou-se, desta forma, mais uma intensa e tradicional atividade pré-industrial rural, que é razão de diversas saudades e reminiscências.

* Fonte: Disponível no livro "OS COLONIZADORES DA COLÔNIA TEUTÔNIA: COLETÂNEA DE TEXTOS", páginas 214 e 215, de Guido Lang.

* Postagem: Júlio César Lang.

* PROIBIDA A REPRODUÇÃO INTEGRAL OU PARCIAL DO TEXTO SEM A MENÇÃO DA REFERIDA FONTE (LEI Nº 9.610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998).


quarta-feira, 8 de julho de 2020

AS PARTEIRAS COLONIAIS

Guido Lang

Um trabalho audacioso e sublime foi praticado pelas parteiras coloniais, que assumiram a tarefa de auxiliar a "dar a luz" as mulheres gestantes. Estas parecem esquecidas na literatura e nas reminiscências comunitárias, pois, com a modernização e popularização dos recursos médicos e hospitalares, desapareceram do meio rural. Elas, no entanto, durante décadas, prestaram um imenso serviço social, auxiliando na perpetuação do gênero humano. Inúmeras vidas foram salvas graças aos seus conhecimentos higiênicos e medicinais, entretanto, na maioria dos casos, labutaram em meio a uma precariedade de recursos. Elas não mediam distâncias e esforços, mesmo, na calada da noite ou nas adversidades do tempo, tratavam em dar curso a algum nascimento emergencial.
As parteiras, costumeiramente, moravam esparsadamente no meio rural, sendo que uma prestava serviço para diversas localidades num raio de quilômetros. Elas, em diversas situações, ficavam de sobreaviso, quando havia alguma mulher em final de gestação; noutros momentos eram chamadas com emergência. Algum pai ou vizinho da parturiente tratava de apanhá-la às pressas e encaminhá-la à casa da gestante. Ela, neste contexto, precisava percorrer enormes distâncias à cavalo, deixando de lado afazeres particulares e horários. O importante consistia em dar vazão à vida.
As “profissionais” não tinham maior especialização teórica, que inexistia naquela época e situação. Os conhecimentos advinham da prática e eram assimilados a partir da convivência com uma antecessora. As parteiras idosas, com dezenas ou centenas de serviços prestados e décadas de atuação, tratavam de ensinar uma sucessora à medida em que suas forças se esvaíam. A escolha podia recair nalguma moça da família, quando havia interesse e vocação pela penosa tarefa; noutros momentos, diante do desinteresse familiar, podia cair nalguma parente ou vizinha. Esta, durante a aprendizagem, era destacada como auxiliar, e progressivamente ia assimilando e dominando os diversos segredos. Vivenciar um parto tornava plenamente possível a atuação, e, na medida da eficiência e dos resultados positivos, sua fama “corria o mundo circunvizinho”. Algumas famílias, neste ramo, adquiriram fama e reconhecimento comunitário e o trabalho passava de herança de avó, mãe, filha e neta.
As parteiras, em algumas ocasiões, precisavam passar dois a três dias nalguma casa familiar devido a partos transcorridos com dificuldades. Elas tratavam de atender o recém-nascido e a mãe, quando havia riscos de vida. Os cuidados com a limpeza interna da genitora e do umbigo do recém-nascido eram imensos devido às possibilidades de infecção e sangramento. As massagens e tratamentos faziam-se necessários. Ela só partia depois da plena recuperação da mãe e do nenê. Alguma familiar ou vizinha tratava de auxiliar a família, ajudando a parteira nos trabalhos complementares ao parto, ocupando-se com a limpeza da residência, procurando cozinhar, etc... Esta pessoa permanecia por mais tempo na moradia, podendo ficar semanas ou meses (conforme o restabelecimento da mãe e da saúde do recém-nascido).
As crianças e maridos não podiam presenciar os trabalhos de parto: a presença feminina assumia completamente o quarto. As crianças, costumeiramente, eram deixadas nalguma família, a permanência podia ser por horas ou dias. Elas, com alguma antecedência, eram avisadas da chegada da “cegonha do banhado”, que traria um novo membro para a família. As explicações, no entanto, nunca entravam em detalhes, eram “guardadas a sete chaves”. Os maridos nem tomavam conhecimento dos serviços das parteiras, que se sucediam unicamente no meio feminino. A ética social da época inviabilizava maiores curiosidades ou interrogações sobre o majestoso trabalho.
As parteiras coloniais, portanto, prestaram um importante e sublime serviço social em meio ao contexto de carências médicas e de recursos financeiros. Os seus conhecimentos suplementaram os instintos maternos e a vazão natural da vida. Estas ostentavam uma vocação à existência humana, sendo que não poupavam distâncias e energias para auxiliá-la a multiplicar-se.

* Fonte: Disponível no livro "OS COLONIZADORES DA COLÔNIA TEUTÔNIA: COLETÂNEA DE TEXTOS", de Guido Lang.


* Postagem: Júlio César Lang.


* PROIBIDA A REPRODUÇÃO INTEGRAL OU PARCIAL DO TEXTO SEM A MENÇÃO DA REFERIDA FONTE (LEI Nº 9.610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998).

sexta-feira, 3 de julho de 2020

A APRECIAÇÃO DOS FRUTOS


Guido Lang

O ancião, na inteira essência, peleou pesado na subsistência familiar. A carestia, na infância e adolescência, viu-se vivenciada. As sobras, em décadas de economia, permitiram comprar morada e terra. Os filhos, no possível, foram gerados no sensato conforto e receberam de vida a educação/formação. As primaveras, nas agitações e atropelos, transcorreram rápidas na direção dos sessenta anos. O momento real sinaliza escasso tempo na ocorrência do derradeiro repouso. O princípio, nos legados, assiste em “fechar com chave de ouro”. O intento no escasso tempo (de “serão”) advém em usufruir das conquistas e realizações. O principal passatempo subsiste em conviver com os netos e conversar com os conhecidos. Os trabalhos, em rotineiros, acontecem em singelos afazeres. O empreendedorismo, em novas iniciativas, ganhou pausa. Os filhos, nos sustentos, convêm “caminhar nas próprias pernas”. O propósito no desfecho da vida consiste em “levar horas mansas”. O prazer na sobrevida acende em apreciar os instantes. As coisas num dia terminam (inclusive na própria vida).

* Fonte: Guido Lang (Livro "Ciência dos Antigos").

* Crédito da imagem: https://kdfrases.com/frase/156669.

* Postagem: Júlio César Lang.

* PROIBIDA A REPRODUÇÃO INTEGRAL OU PARCIAL DO TEXTO SEM A MENÇÃO DA REFERIDA FONTE (LEI Nº 9.610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998).

* Sugestões de páginas de leitura:
http://juliolang.blogspot.com/

http://guidolang.blogspot.com/